Lúcia Facco, uma lésbica que escreve
por Laura Bacellar
Conheço a Lúcia faz já uns bons anos e fico feliz de ter-me tornado amiga dela. Mas não é como amiga que falo aqui e sim como editora profissional. Publiquei o primeiro livro dela pelas Edições GLS em 2004, As heroínas saem do armário, que me deixou espantadíssima: foi a primeira dissertação de mestrado completamente legível que vi na vida! Parece um romance de tão interessante, inacreditável.
E é isso o que a Lúcia consegue fazer sempre, unir a seriedade acadêmica de quem lé e pesquisa antes de emitir opiniões, aí soltar um texto cortante, acessível, provocador. Quem não acredita que leia o capítulo sobre a “Mulher-falo” nessa obra, que a Lúcia lê com o maior prazer em locais públicos, chocando ouvintes ao soltar a dúvida sobre por que o líquido lubrificante produzido pela vagina da mulher não tem nome popular, como a porra.
A Lúcia é ótima porque instiga mesmo, convida a pensar. E é lésbica assumidíssima, com nome e sobrenome. E escreve um monte, é a lésbica mais publicada da literatura nacional. Confira só o que ela já escreveu e o que ela fala sobre escrita lésbica:
• As guardiãs da magia, publicado pela Editora Malagueta em 2008, um romance ambientado numa antiguidade ficional, apresenta uma história de amor entre praticantes de magia.
• Era uma vez um casal diferente, sua tese de doutorado sobre homofobia na literatura infantil, publicada pela Summus em 2009.
• O conto “Diário”, publicado na coletânea de contos Todos os sentidos: contos eróticos de mulheres, CL Edições Autorais, 2003, ganhou do Prêmio Alejandro Cabassa da União Brasileira de Escritores de melhor livro de contos do ano;
• As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea, publicado em 2004 pelas Edições GLS, ganhou o Prêmio Arco-Íris de Direitos Humanos na categoria Cultura-Literatura e comenta para que serve essa nossa literatura;
• Lado B: histórias de mulheres, publicado em 2006 pelas Edições GLS, mostra o lado ficcional de Lúcia, trazendo histórias em que a homossexualidade nunca é questionada ou focada, é tão natural que é ponto de partida;
• O conto “São Tomé das Letras”, publicado na coletânea de contos Elas contam, publicada em 2006 pela Editora Corações e Mentes, tendo sido também organizadora deste livro.
• Organizou ainda o livro Victória Alada de Lara Lunna, publicado em 2007 pela Editora Corações e Mentes, e tem vários artigos e ensaios publicados em periódicos técnico-científicos.
Eu fiz a ela algumas perguntas sobre escrita e aqui estão as respostas.
O que você acha de literatura lésbica?
Antes de mais nada, eu preciso dizer que a literatura, para mim, é política. Não no sentido de induzir as pessoas a pensarem assim ou assado. Pelo contrário. Uma das capacidades que a literatura tem é a de fazer com que as pessoas pensem, questionem, vejam as mais diferentes possibilidades de ser, de existir, de se movimentar (socialmente) no mundo. Ou seja, a literatura não destrói conceitos, criando outros para por no lugar. Ela forma mentes capazes de julgar e discernir por elas próprias.
A literatura lésbica tem a capacidade de permitir a identificação para as mulheres lésbicas, representando, muitas vezes, uma verdadeira “tábua de salvação” para aquelas que se sentem diferentes, devido aos seus desejos; tem a capacidade, também, de tornar visíveis relações afetivas e sexuais que a sociedade teima em querer varrer para baixo do tapete. A partir dessa visibilidade, as leitoras percebem que não existe um único e legítimo modo de amar. Todas as formas de amor são possíveis e válidas. Essa nova percepção se estende a outros planos e leva as leitoras ao questionamento de outras tantas ideias preconceituosas
impingidas a nós pela nossa cultura, desde a nossa mais tenra infância.
O que vc acha das autoras que postam em sites?
Eu acho que a internet possibilitou um crescimento bastante significativo desse tipo de literatura por vários motivos. O primeiro deles é o fato de que as autoras são protegidas por um anonimato, caso desejem, e isso faz com que elas se sintam mais livres para escrever.
Essa é uma faca de dois gumes. Se, por um lado, os textos ganham visibilidade, por outro lado, elas continuam sendo invisíveis. Essa é uma questão bastante complicada, pois elas se isentam da responsabilidade que as autoras devem ter sobre seus escritos. Não podemos nos esquecer de que uma coisa é escrevermos para nós mesmas e para um grupo restrito de parentes e amigos e outra coisa muito diferente é escrever para milhares de leitoras. Ao se tornarem públicos, os textos ganham independência e podem seguir caminhos indesejados pelas autoras. Quando eles vão direto da fonte (a autora, no caso) até a
consumidora (a leitora), sem editora, revisora, etc, que os leiam, pode ser algo complicado.
Eu faço leitura crítica e procuro sempre ler com os meus olhos, mas com os olhos do público também. Sempre penso: o que o leitor médio poderia achar desse texto?
As autoras de textos de sites não devem se deixar enganar pela privacidade de suas casas e a cumplicidade do monitor e do teclado, e precisam se lembrar de que seus textos serão lidos por um público bastante variado composto por mulheres das mais diferentes faixas etárias, de adolescentes a senhoras de mais idade, das mais diferentes crenças políticas etc.
Em outras palavras, essas autoras não devem se isentar da responsabilidade e escrever como se estivessem escrevendo um diário secreto.
Qual você acha o melhor caminho para alguém começar a escrever?
Acho que as aspirantes a escritoras devem ser, antes de mais nada, leitoras. Nas décadas de 1980 e 1990, especialmente na última, parece que virou moda os escritores arrotarem sua auto-suficiência declarando aos quatro ventos que não leem quase nada. Isso foi assunto recorrente em aulas de Teoria Literária no meu curso de Mestrado.
Não é impossível que uma pessoa que não leia quase nada consiga escrever, mas, sem sombra de dúvida, jamais será uma escritora sofisticado, de boa literatura. Quando muito, será uma ótima contadora de causos. Mas eu acho que a maioria das pessoas, quando pensa em escrever, deseja fazê-lo da melhor maneira possível. Quem não gostaria de escrever como uma Clarice ou um Caio Fernando?
Em segundo lugar, é muito importante que a pessoa pratique a escrita sem medo de “errar”. Não há erro na literatura, porque não há erro na arte.
E, uma observação importante: a escrita de um texto exige paciência, capricho e dedicação. Escreva. Depois reescreva. Uma, duas, três vezes. Reescreva tantas vezes quantas forem necessárias. Os textos precisam de polimento, inspiração sim. Intuição sim. Mas reflexão também.
Mexa nele, modifique-o sem dó nem piedade. E tenha a certeza de que, quando ele estiver pronto, publicado, você achará que não ficou bom e que deveria ter mudado isso ou aquilo, mesmo que todos o achem perfeito.