Opinião da editora
por Laura Bacellar
No dia 4 de julho as autoras Karina Dias, Mariana Cortez, Lúcia Facco e eu fizemos a 1ª. Conversa Lésbica Literária de Paraty durante a OFF FLIP. Foi muito interessante, com participação acalorada de várias moças da platéia e uma discussão que se estendeu por boas duas horas.
Um dos temas levantados, e que aliás sempre surge quando se fala de literatura lésbica, é se uma pessoa com sensibilidade e imaginação tem condições de escrever um texto de temática lésbica – um homem como o Chico Buarque ou uma mulher hetero bem informada – ou se é preciso ser uma lésbica para tanto.
Essa discussão tem defensores fortes de ambos os lados. Há uma nobre tradição que diz que a literatura não é documentária mas arte, e que para fazer arte a pessoa precisa ter sensibilidade e usar sua riqueza interior. Não precisa, assim, ter experimentado na pele tudo o que descreve.
A outra ala desse embate costuma dizer que sim, é verdade que uma escritora não precisa ter vivido tudo o que coloca nas suas histórias (senão não existiria a ficção científica, por exemplo), mas pelo menos a essência ela necessita ter experimentado na sua alma, ou sua literatura soará falsa.
É uma boa discussão. Uma das presentes argumentou que Kafka nunca virou uma barata gigante para escrever A metamorfose. Outra rebateu que ninguém virou uma barata gigante para saber se a descrição de Kafka é boa ou falsa…
Apesar de achar a troca de idéias uma delícia, eu tenho uma posição definida a respeito: literatura lésbica precisa ser escrita por lésbicas.
Como argumento, eu vou apresentar aqui nosso lançamento mais recente, o livro Amores cruzados, de Fátima Mesquita.
Eu conheço a Fátima faz já mais de dez anos, fui eu que publiquei seu primeiro livro – Julieta e Julieta – pelas Edições GLS. Essa obra foi um marco por ter sido publicada sem pseudônimo e conter as primeiras histórias em língua portuguesa com protagonistas lésbicas e finais felizes. Sério, até 1999 só tinha personagem lésbica suicida ou solitária ou alcoólica. Desde então a autora lançou mais seis títulos diferentes, dirigidos a outros públicos, e só agora voltou a escrever para lésbicas.
Amores cruzados é uma história que eu achei deliciosa, com aquele ritmo e oralidade de que a Fátima é mestra. Ela é mineira, contadora de causos e tem uma prática em textos para rádio e televisão enorme. Daí que seus diálogos são perfeitos, dá para ouvir as personagens falando com total naturalidade, o livro acaba antes da hora de tão prazerosos são os trinta dias em que acompanhamos Carolina em andanças variadas.
Mas não é só isso. O casamento entre as duas mulheres ressoa de tão verdadeiro. Quem já viveu uma relação longa com outra mulher com toda certeza vai reconhecer muitos de seus sentimentos ali, a rotina, o encaixe perfeito, as esquisitices. E as traições, as brigas, o perdão, aquela dúvida que a umas tantas bate sobre a relação.
Nada disso é exclusivo de lésbicas, claro, mas nós temos um jeito um pouco diferente de passar por esses altos e baixos dos relacionamentos. O meu argumento sobre o debate acima então é esse texto. Para mim, apenas uma lésbica poderia ter escrito algo tão caracteristicamente nosso. É óbvio que ela não imaginou, mas viveu com outra mulher. E não uma noite apenas, mas muitos anos de trocas e acertos. E não escondida, mas assumida e resolvida.
Tudo isso passa através dos poros da história simpática e cheia de pequenos enigmas sobre Carolina, Gisa e uma admiradora secreta. E só passa porque é verdadeiro. Na minha opinião, nem em um milhão de anos um homem ou uma mulher hetero escreveria algo como Amores cruzados.
Esteja à vontade para discordar, mas leia e veja se eu não estou falando a verdade…