As mulheres e a Inquisição
por Lúcia Facco
Como escritora eu sempre me aventurei pelo campo das narrativas curtas: contos, cartas. Mas resolvi tentar escrever um romance, e quando isso aconteceu, fiquei pensando a respeito do assunto, buscando um tema que me interessasse tanto a ponto de fazer parte de minha vida durante alguns meses.
Certo dia, estava lendo o Malleus Maleficarum, o martelo das feiticeiras, que se trata de um “manual” para os inquisidores, com técnicas de tortura orientadas. Publicado no ano de 1486, é um verdadeiro requinte de sadismo. Na edição brasileira, há uma introdução histórica escrita por Rose Marie Muraro que fala da época em que a sociedade era matriarcal e de quando os homens descobriram que podiam se utilizar de sua força física para subjugar as mulheres, passando a ter o controle social com todas as vantagens que poderiam obter a partir daí.
Fiquei fascinada pelo assunto e passei a ler compulsivamente tudo o que podia sobre a dominação masculina e sua relação com a Inquisição.
Esta prática se desenvolveu largamente na sociedade européia, especialmente contra as mulheres. Nas aldeias e vilas havia sempre uma mulher com conhecimentos sobre ervas medicinais, partos e que, muitas vezes, “predizia o futuro”. Geralmente eram mulheres velhas, tanto que a imagem da “bruxa” que chegou até os dias de hoje é de uma velha encarquilhada e malvada. As pessoas da época preferiam entregar-se aos cuidados daquelas mulheres que, tradicionalmente, eram responsáveis pela saúde de todos e possuíam um conhecimento antigo e seguro, transmitido de geração em geração. Os raríssimos médicos (homens) disponíveis eram preteridos, acontecendo o mesmo com a Igreja, já que essas “sábias” eram consultadas sobre questões cotidianas como o clima, a higiene, a fertilidade, a saúde do gado etc.
Era totalmente inadmissível para as autoridades da época que as mulheres, que ocupavam uma posição social subalterna, tivessem tanto status e prestígio.
A Igreja, que sempre foi misógina, logo se encarregou de criar uma série de idéias que ligavam essas mulheres sábias à bruxaria, inaugurando uma verdadeira cruzada contra as mulheres, colocando-as em “seus lugares”. Elas passaram a ser vistas com suspeita pela sociedade, constituída em maior parte por camponeses ignorantes e supersticiosos, que aceitou essa “caça às bruxas” prontamente, dando início a uma perseguição insana conhecida como Santa Inquisição.
Este assunto ficou me assombrando por muito tempo, até que resolvi “purgá-lo” escrevendo sobre ele. Através da literatura pude mudar o destino de algumas dessas mulheres perseguidas, torturadas e assassinadas para distração de verdadeiras multidões. E mais, incluí nesses novos destinos, salvos dessa loucura, um outro tema tão execrado pelos intolerantes/ignorantes de plantão: relações amorosas entre mulheres. Foi assim que escrevi As guardiãs da magia
Confesso que no início, acostumada que estava a concluir os contos rapidamente, durante os meses em que escrevi o romance apaixonei-me pelas minhas próprias personagens e estabeleci com elas uma relação conturbada, na qual me acordavam no meio da noite, exigindo uma continuação para situações deixadas pela metade no processo de escritura.
Se por um lado foi um tanto angustiante, por outro me deleitei com a liberdade de desenvolver bastante a personalidade das personagens e de criar diversas situações para elas.
O fim do romance, na verdade, foi a imposição que fiz a mim mesma de colocar um ponto final, que acabou se transformando em reticências.
As vidas de Sira, Ariadne, Sibila, Érico, Lourenço e dos outros continuam. E eles, que me deram umas férias, já estão me chamando para recomeçar a partir daquele ponto, por isso as reticências.
Vem um segundo volume por aí. Nos aguardem.